O Brasil é um país agrícola que, em menos de 50 anos, estará alimentando boa parte do planeta. Nossa aptidão (e espaço) para cultivar alimentos até pode nos levar ao grupo dos países desenvolvidos. Isolados não salvaremos o mundo, mas seremos decisivos para o futuro. Imagine que até 2050 o consumo de comida vai dobrar, com o acréscimo de 2,3 bilhões de habitantes na Terra, segundo dados da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO).
Brasil, China e Índia terão aumento de produção nos próximos anos. Os três países têm enxergado com outros olhos o campo, invertendo a lógica da modernidade de crescer sempre mirando os centros urbanos. No início de novembro, The Economist fez uma reportagem sobre o papel do Brasil no futuro do planeta. A revista inglesa falou sobre “o milagre da agricultura brasileira” como a maior contribuição que o país pode dar ao mundo.
Mas, antes de suspirar aliviado pela esperança de que os almoços de seus netos estão garantidos, vale a ressalva: mesmo com os três países produzindo mais, talvez o volume ainda não seja suficiente para alimentar os 9,1 bilhões de terráqueos em 2050. Para dar conta, a produção agrícola mundial precisa aumentar 70% nos próximos 40 anos.
Ou seja, sim, nós temos um problemão e a solução dele passa pelo Brasil. Isso só aumenta a responsabilidade de quem, todo dia ou apenas no fim de semana, amarra o avental na cintura, seja para cozinhar feijão, seja para selar vieiras. “Comer é um ato político”, repetiam como mantra chefs, empresários e estudantes de gastronomia durante a Semana Mesa SP, cujo tema deste ano foi justamente Sustentabilidade – O Que a Cozinha Pode Fazer pelo Planeta?
A cozinha pode fazer muito. Alex Atala, o chef brasileiro mais famoso lá fora, aproveitou sua participação no Ao Vivo para defender mais engajamento dos colegas. Falou que um cozinheiro pode (e deve) se recusar a usar ingredientes de qualidade inferior, por serem mais baratos. Também defendeu a escolha de pequenos produtores e de regiões próximas ao restaurante como uma iniciativa de cidadania do chef. “Veja o exemplo do Thiago (Castanho), que faz em Belém uma cozinha cidadã, pautada pelo alimento de qualidade e dos arredores”, disse, apontando para o jovem chef paraense que acompanhava sua aula com cara de fã.
O prato que Atala escolheu para mostrar no Ao Vivo foi apresentado pelo próprio chef como o menos sustentável do cardápio do D.O.M. “É um filé-mignon de javali – agora, imagine que um animal só tem dois filés de 150 gramas cada um”, diz. “Um javali é sacrificado por 300 gramas de carne de primeira!” Claro, a história do prato começou a mudar quando o fornecedor procurou Atala para dizer que não lhe venderia mais o corte, pois ninguém se interessava pelas outras partes do animal. “Não pensei duas vezes: disse que compraria o javali inteiro a partir daquele momento.”
O chef fez um caldo com todas as partes do javali que ninguém compra (rabo, orelha, cabeça, ossos – ricos em colágeno). Cerca de 90 quilos passam por cozimento lento, por três dias, e se transformam em 6 litros de demi-glace, que é a base do consomê oferecido como segundo serviço do prato de javali. “É minha redenção com o criador de javali”, diz.
Parece pouco? Talvez seja. Mas se uma lição fica dessa semana em que apaixonados por gastronomia discutiram o futuro em São Paulo é que é assim mesmo, com iniciativas individuais, mas não limitadas, que a cozinha vai contribuir para o futuro do planeta.
Fonte: Prazeres da Mesa
Por Marta Barbosa